O Estado Democrático de Direito
O Estado, segundo as clássicas teorias, constitui-se pela conjugação de seus elementos: povo, território e governo. Melhor resumindo, forma-se pela aglutinação natural de um determinado povo, num dado território, sob o comando de um certo governo, com a finalidade própria de alcançar o bem comum (3). Essa a essência de todo o Estado, em que pese reconhecermos a existência de grande controvérsia doutrinaria sobre o tema.
O Estado de Direito surge como forma de oposição ao Estado Polícia. Na origem era decorrência de idéias e conceitos tipicamente liberais, que pretendiam assegurar a observância do princípio da legalidade e da generalidade da lei (4). Sobrevieram várias definições, todas elas assentadas em diferentes premissas, mas tendo em comum o sustentáculo da juridicidade estatal (5).
A democracia (6), por outro lado, quer significar a efetiva participação do povo nas decisões e destinos do Estado, seja através da formação das instituições representativas, seja através do controle da atividade estatal. Em síntese, traduz-se na idéia de que o povo é o verdadeiro titular do poder, mesmo que este seja exercido através de representantes eleitos. Nela os representantes devem se submeter à vontade popular, bem como à fiscalização de sua atividade; o povo deve viver numa sociedade livre, justa e igualitária.
A expressão Estado Democrático de Direito, por certo, decorre da união destes conceitos. Todavia, significa algo mais do que essa mera conjugação. Representa algo novo, que incorpora essas idéias, mas as supera, na medida em que introduz um componente revolucionário e transformador do Estado tradicional. A intenção do legislador constituinte, ao cunhar a expressão "Estado Democrático de Direito", já no primeiro artigo de nossa Carta Política, foi evidenciar que se pretendia um país governado e administrado por poderes legítimos, submissos à lei e obedientes aos princípios democráticos fundamentais. Certamente, não se pretendia, ao adjetivar o Estado de democrático, apenas travar o poder, mas sim alcançar-lhe legitimação, fortalecimento e condições de sustentação (7).
3. A Constituição de 1988
A Constituição, como diploma que institui, organiza e delimita os poderes do Estado, é a fonte da qual provém as garantias e liberdades individuais, bem como os meios de organização e sustentação do Estado. Essas são as metas fundamentais que devem estar presentes num Texto Constitucional.
Embora não seja perfeita, nossa Carta Política pode ser considerada uma das mais modernas e democráticas no que diz respeito ao tema enfocado. Afinal, determina que o Brasil será uma República; qualifica o Estado como Democrático de Direito e textualiza outros princípios presentes em todos os Estados contemporâneos (8). E vai além disso, prevendo mecanismos de participação ativa não só através do voto, mas também do controle aos poderes instituídos.
É certo, porém, que o Estado Democrático de Direito somente se aperfeiçoa na proporção em que o povo nele ativamente possa se inserir; na medida em que os representantes reflitam em seus atos os verdadeiros anseios populares. E os mecanismos constitucionais para tal foram previstos sem dúvida. A cidadania foi erigida a fundamento e a construção de uma sociedade livre, justa e solidária é um objetivo a ser alcançado pelos representantes populares. Mas somente esses valores não seriam suficiente se não tivessem sido também incorporadas algumas instituições fundamentais à sua realização (9). E, em todas elas, o ponto funcral é sempre a participação popular.
A legitimação popular, sem dúvida, decorre lógica e diretamente da forma de governo (República), do tipo de Estado (Democrático de Direito) eleitos pelo constituinte, além é claro da titularidade do poder que lhe foi conferida. Mas não só disso. A cidadania, parece-nos, é o grande fator de legitimação do povo, permitindo que haja em defesa das instituições democráticas.
Nossa Constituição foi chamada de "Carta Cidadã" exatamente pelo fato de estarem nela presentes os mecanismos de expressão das das vontades populares (10). Alçada a fundamentl constitucional do Estado, a cidadania representa muito mais do que a mera participação no processo eleitoral. Cidadão, no caso, não é sinônimo de eleitor, mas sim de indivíduo participante e controlador da atividade estatal.
O que se quer, enfim, é deixar claro que o povo está apto a fiscalizar e participar da elaboração e concreção dos programas públicos. E mais, somente assim será possível dar plena eficácia aos postulados democráticos insertos em nossa Constituição. Por isso, passaremos agora a examinar os meios conferidos à efetivação da participação popular da prática democrática.
4. Mecanismos de Participação
Diversas naturezas possuem os instrumentos entregues ao povo para se tornar membro efetivo e participante da sociedade em que vive. Políticos, sociais ou jurisdicionais, todos eles se destinam à mesma finalidade de submeter o administrador ao controle e à aprovação do administrado. Como bem observa Eduardo K. Carrion, "quando se fala em controle social da administração pública, procura-se sugerir a idéia de um controle ao mesmo tempo político e social, a exemplo dos últimos referidos. Não apenas um controle de legalidade, mas principalmente um controle de mérito, de eficácia, de conveniência e de oportunidade do ato administrativo" .
O Brasil é uma democracia semidireta, na qual o povo e titular do poder e o exerce pelos seus representantes ou diretamente, nos termos previstos na Constituição. Assim, veremos que o constituinte escolheu alguns intrumentos para reaproximar o cidadão das decisões políticas, seja através de democracia representativa (sufrágio universal), seja pelo caminho da democracia participativa (plebiscito, referendo, iniciativa popular).
4.1. Sufrágio Universal
Trata-se de mecanismo de controle de índole eminentemente política (12). Em nosso país, está ele previsto no art. 14 da Carta Política, que assegura ainda o voto direto e secreto, de igual valor para todos.
Constitui-se no direito de escolha dos representantes e de ser escolhido pelos seus pares (13). Visa a escolha de pessoas para atuar em seu nome, através de mandatos com períodos determinados. Daí a importância fundamental deste que, sem dúvida, é o momento máximo de uma democracia. Como acentua Nelson Oscar de Souza, se faz necessária sempre a distinção entre sufrágio, voto e eleição. Sufrágio é o direito de escolha, como já se disse; voto é o ato que o assegura e a eleição e o processo dessa escolha (14).
Costuma-se dizer que a forma de sufrágio denuncia, em princípio, o regime político de uma determinada sociedade. Isto é, quando mais democrática esta, maior será a amplitude do sufrágio e mais ressonância terá a sua caracterização como universal.
Mas, se isso é verdade, não se pode negar também que não é totalmente absoluta. Um sistema eleitoral pode prever condições legítimas a serem preenchidas para se tornar eleitor, sem que isso importe em desconsideração do princípio, desde que não sejam discriminatórias ou em consideração a valores pessoais. Segundo José Afonso da Silva, "considera-se, pois, universal o sufrágio quando se outorga o direito de votar a todos os nacionais de um país, sem restrições derivadas de condições de nascimento, de fortuna ou de capacidade especial" (15).
No Brasil, só é considerado eleitor quem preencher os requisitos da nacionalidade, idade e capacidade, além do requisito formal do alistamento eleitoral. Todos requisitos legítimos e que não descaracterizam ou diminuem o adjetivo "universal". Nem mesmo a restrição a elegibilidade do analfabeto (16) (art. 14, §4º, da CF/88) pode ser considerada atentadora ao princípios, pois, convenhamos, lhes retira a condição para exercer o mandato.
4.2. Plebiscito
É o primeiro dos instrumentos de democracia participativa postos à disposição do povo (art. 14, inciso I, da CF/88). Consiste na possibilidade de o eleitorado decidir uma determinada questão de relevo para os destinos da sociedade, com efeito vinculante para as autoridades públicas atingidas.
Alguns autores consideram-no de democracia semidireta (17), com o que não concordamos, pois a participação se dá de forma direta; o povo decide diretamente, sem intermediários ou representantes. É bom que se diga que a eventual interferência dos representantes populares na realização de atos posteriores, não retira o caráter direto da medida, tendo em vista a natureza vinculativa da decisão plebiscitária.
Disciplina a Constituição (art. 14, caput), que ela se dará "nos termos da lei". Logo, lei ordinária poderá convocar o plebiscito, sem que haja qualquer limitação temática. Ao nosso ver, contudo, é preciso que haja um fundado relevo e interesse no assunto a ser submetido à vontade popular, não podendo ser utilizado tal mecanismo para decisões ordinárias, as quais a lei preveja meios próprios (ex. procedimentos legislativos ordináriaos).
No Brasil, tivemos em 1993 um plebiscito para decidir a forma (República x Monarquia) e o sistema de governo (Presidencialista x Parlamentarista), que já estava previsto desde a promulgação do Texto Maior, no art. 2º das Disposições Transitórias. A vontade popular optou pela manutenção da forma de governo republicana e o sistema presidencialista.
Atualmente, muitas cogitações tem sido feitas a respeito de uma reforma constitucional. Pensamos que a sua legitimação dependa da convocação popular, para que se manifeste através de plebiscito, pois os atuais Parlamentares não têm legitimidade para fazê-lo. A sua legitimação é de legislador ordinário e/ou de constituinte derivado (com poder restrito a emendas) e não originário (18).
4.3. Referendo
O "referendum" também importa na participação do povo, mediante voto, mas com o fim específico de confirmar, ou não, um ato governamental. A decisão do referendo, assim como a do plebiscito, tem eficácia vinculativa, não podendo ser desrespeitada pelo administrador.
É procedimento formal regulado em lei, pois a Constituição assim determina. O poder de iniciativa compete aos órgãos do Estado (em nossa opinião somente ao órgão do qual emana o ato, em virtude do princípio da separação dos poderes) (19) ou a um certo número de cidadãos (iniciativa popular).
Aqui sim concordamos que a participação se dá de forma semidireta, pois o ato já existe e deve apenas ser confirmado. Logo, a participação popular não é direta como ocorre no plebiscito, quando o próprio povo decidirá sobre a realização ou não do ato.
Alguns autores lhe conferem finalidade específica de confirmação de ato do corpo legislativo (20), com o que não concordamos por entendê-lo de forma mais ampla. Pensamos que não há qualquer óbice para que se determine a submissão de um ato do Poder Executivo ao referendo popular.
Contudo, não se pode negar que sua aplicação mais corriqueira se refere mesmo aos atos do Poder Legislativo. Aliás, deixando clara a fragilidade e a imaturidade de nossa democracia, o mecanismo não foi utilizado sequer uma vez nos dez anos de vida da Carta Constitucional.
4.4. Iniciativa popular
Este procedimento consiste no desencadeamento do processo legiferante pelo povo, mediante proposição de determinado projeto de lei por certo número de eleitores. Novamente há vinculação do órgão para com o projeto apresentado. Contudo, isso não significa que sua aprovação seja obrigatória, o que, com certeza, não teria sentido. Diz respeito, isto sim, ao dever de apreciação por parte do Congresso. Entretanto, não há como negar a legitimidade ao projeto, que chega à Casa Parlamentar com o respaldo daqueles eleitores que o subscrevem.
No Brasil, o mecanismo ganhou contornos no art. 61, §2º, que estabelece as premissas básicas da iniciativa popular no plano federal. Todavia, em nossa opinião, foi tímido o legislador constituinte ao deixar de autorizar a iniciativa popular também para desencadear o processo de emenda constitucional. Se é titular do poder (art. 1º, parágrafo único, da CF/88) deve poder não só o menos (lei ordinária), mas também o mais (emenda à constituição).
Até a presente data, a prerrogativa ainda não foi utilizada pela população brasileira que, em sua maioria, sequer a conhece.
4.5. Outros Instrumentos de Democracia Participativa
Existem ainda outros instrumentos de participação popular nos atos governamentais, diferentes destes adotados em nosso sistema constitucional.
O veto é um exemplo. Consiste num instrumento político, através do qual se permite aos cidadãos exigir que um dado projeto de lei seja submetido ao veto popular. A rejeição do projeto importará em se tomar o projeto como se nunca tivesse existido. Difere ai do veto tradicional, que ainda possibilita ao Parlamento derrubá-lo, com um certo número de votos. Embora interessante, parece de pouca eficiência, ainda mais no Brasil que sequer conseguiu aprimorar e efetivar os instrumentos já existentes.
Porém, há um mecanismo que deveria ter sido estendido ao povo. Trata-se da legitimidade para propor ação direta de inconstitucionalidade e fiscalizar, pela via direta, o controle de sua constituição.
Optou o legislador constituinte, na linha que inspirou toda a elaboração da chamada Carta Cidadã, pelo caminho da democratização dos procedimentos. Isso acarretou na ampliação da legitimidade "ad causam" para a propositura de ADINs, alcançando além de cunho eminentemente político (Presidente da República, Mesas Legislativas, Governados de Estado), outras representativas de vários seguimentos da sociedade (partido político com representação no Congresso e entidade de classe de âmbito nacional), com ênfase para o representante da comunidade jurídica (Conselho Federal da OAB).
Contudo, acreditamos que teria sido mais correto se se tivesse autorizado também o cidadão a propô-la. Afinal, se pode fiscalizar o administrador, através da ação popular, porque não fazê-lo também em relação ao legislador?! Se tem a iniciativa para propor a criação de atos normativos, porque deixá-lo à margem dos mecanismos diretos de controle?!
Apesar do avanço, foi tímido o legislador constituinte, por não ter ido além das Cartas que lhe serviram de norte. Mas, com toda certeza, existiram razões para esta cautela por parte do constituinte e a que mais nos compraz é a falta de cultura e preparo de nosso povo, no atual momento, para tal avanço. Por certo, este passo acarretaria numa exagerada demanda ao STF, o que provocaria o atravancamento e a total inoperância daquela Corte, já tão atribulada com seus atuais afazeres. Esperamos, apenas, que nosso país possa evoluir social e culturalmente, que nosso sistema jurisdicional se aprimore, a tal ponto que possamos defender nossa posição, sem os empecilhos que hoje lhe servem de obstáculo.
5. Conclusões
De tudo que foi exposto, é possível crer que não é no Texto Constitucional que se encontra o problema da efetivação da democracia participativa em nosso país. Parece-nos que poucos acréscimos seriam necessários para que nossa Carta se aproxime da perfeição no que diz respeito ao tema. Aliás, ousariamos sustentar, inclusive, que nenhuma reforma tem urgência.
Colocar em práticas as normas constitucionais, tornando-as aliadas da realização das políticas sociais necessárias, "meo iudicio", é o grande desafio que se deve enfrentar. Nossas autoridades e até mesmo o povo tem-se furtado à implementar as prerrogativas constitucionais. Em relação ao povo, com certeza, isso não decorre da falta de vontade, mas sim da ausência de conhecimento do poder que detém e da falta de cultura participativa e de informação sobre os meios para realizá-la.
A efetiva utilização de tais mecanismos, sem dúvida, engrandeceria nossa sociedade. Não só pela participação popular na escolha de seu próprio destino, mas também pela inequívoca assimilação dessas escolhas pelos representantes populares.
Nosso país precisa, para se tornar um verdadeiro Estado Democrático de Direito, da seguida e reiterada participação popular na realização das atividades estatais. Esta participação, com certeza, não pode continuar a se dar somente de quatro em quatro anos, em épocas eleitorais.